Não vivi, felizmente, no tempo da 2.ª Guerra Mundial.
Lembro-me, no entanto, de ouvir os mais velhos lamentarem-se dos racionamentos de açúcar, sal e outros bens de primeira necessidade, como sendo tempos de grandes necessidades.
Mais tarde, confrontei-me com o sobressalto da guerra em Angola, que seifou amigos e conhecidos, e tanta gente de etnia negra, nomeadamente crianças subnutridas, afectadas por epidemias fatais, devido à falta de cuidados primários de saúde e de condições sanitárias.
Contra a situação, que a maioria dos poderes de então (políticos, militares e religiosos) branqueavam, havia também quem levantasse a voz e, denunciasse os atropelos aos direitos humanos.
Recordo as cartas pastorais e as homilias frontais de D.Francisco da Mata Mourisca, Bispo de Carmona e São Salvador, cuja repercussão se fazia ouvir, acidentalmente, no deserto da contestação, em alguma imprensa situacionista de Luanda.
Mais tarde, no serviço militar, apercebi-me que muitos dos meus colegas, embora residentes em Angola, tinham uma forte consciência crítica sobre os atropelos aos direitos humanos pelo que o contingente do território não asseguraria por muito mais tempo a defesa do estado português naquela colónia africana. E assim foi. Os militares milicianos incorporados em Angola foram os primeiros a passar à disponibilidade.
O certo é que a descolonização fez retornar à Pátria quase um milhão de brancos e algumas centenas de negros. Os primeiros, penalizados pela perda de teres e haveres de uma terra que, por naturalidade ou identidade, consideravam sua; os segundos, fugidos à insegurança, à fome e à morte causada por interesses internacionais que, sem escrúpulos, destruiram vidas e haveres.
É assim a guerra, mãe de todas as crises e horrores, como tão bem a descreveu o Pe António Vieira.
O mais duro de todos é, certamente a fome.
Em 1982, estive em Washington, acompanhando uma visita de representantes da Região. A comitiva encontrou-se no Congresso e no Senado com representantes eleitos e visitou aqueles imponentes edifícios que não mais esquecerei.
Mas a imagem que mais retenho dessa visita à capital federal dos EUA é a longa fila de gente que, à hora do almoço, num recanto de uma enorme avenida, aguardava uma refeição para matar a fome, em autentico contraste com a opulência e o fausto do poder político e económico.
Esta semana fiquei surpreendido com espectáculo semelhante, salvo as devidas proporções, num jardim central de Ponta Delgada.
Caía a noite e um leve chuvisco acompanhava várias dezenas de pessoas, sobretudo homens. Uma mulher, provavelmente voluntária, de joelhos em terra, retirava a comida de uma grande panela pousada no chão. As duas únicas mesas do recinto estavam ocupadas por famintos; outros dispersavam-se pelos bancos do jardim, e outros ainda comiam com pratos colocados em cima dos reservatórios do lixo. Tudo num silêncio solene que envolvia poucos mirones estupefactos com tão inusitada situação que calava a fome e os lamentos de quem vive sem o essencial e padece por tristezas e fracassos que só Deus sabe!...
“Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão”(Paulo VI, “O Progresso dos Povos”, nº3).
Este repto do Papa feito em 1967, no final do Concílio do Vaticano II, “traz à Igreja a obrigação de se pôr ao serviço dos homens”.
A resposta foi dada mais uma vez pelo Pe Weber Pereira. Lá estava ele pensando, provavelmente, que, enquanto no centro da cidade se acendem holofotes e se enfeitam simbolos da caridade Divina, em grandes tendas e salões, ali, nem uma mesa para a refeição fraterna de pobres, excluídos e carenciados, “em tudo iguais no sonho e na desgraça”.
Há lugar no interior do templo para se doutrinar sobre a Caridade, mas não há uma nesga de campo em espaços públicos e religiosos para, condignamente, acolher e saciar os mais amados por Deus...
“Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem do alimento quotidiano e algum de vós lhes disser: ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos, sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará?”, questiona S.Tiago.
Acaso instituições públicas e religiosas celebram, evangelicamente, o Amor, a Caridade e a Partilha - verdadeiros sinais redentores do Espírito de Deus -, quando “o pobre Lázaro não se pode sentar à mesa do rico?”(Lc 16,19-31)
“Quando tantos povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, (...) torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento público ou privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou pessoal (…). Sentimo-nos na obrigação de o denunciar. Dignem-se ouvir-Nos os responsáveis, antes que se torne demasiado tarde.” (Paulo VI PP 53)
Este alerta, infelizmente, não encontra eco nem na estrutura eclesiástica, cujos responsáveis parecem mais interessados em participar nos cerimoniais dos poderes deste mundo, nem nos crente e fiéis que olham os famintos e necessitados como gente sem vontade para trabalhar, sem auto-estima, carregada de vícios... um peso social que não compete aos outros suportar.
“Antes que se torne demasiado tarde” importa ponderar procedimentos para que a comunidade cristã seja testemunho da doutrina do amor, da solidariedade, sem a qual os pobres e oprimidos por toda a espécie de vícios e desigualdades se rebelem contra os demais.
Normalmente, as guerras começam por pequenos e localizados conflitos sociais. No entanto, após eles deflagrarem, muito difícil será contê-los.
Ontem como hoje!
Voltar para Crónicas e Artigos |